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Opinião

A nova geopolítica industrial

04 Novembro 2024

Texto de Vítor Ferreira, Diretor Executivo da Startup de Leiria e docente do Politécnico de Leiria



No chamado Sul Global (termo que se refere aos países em desenvolvimento, principalmente na América Latina, África e Ásia, destacando as diferenças económicas, políticas e sociais em relação ao Norte Global), podemos encontrar cidades modernas, cosmopolitas, sejam elas Lima, Nairobi, São Paulo, Banguecoque ou Santiago. Estas cidades são em muito semelhantes a outras capitais mundiais, mas um olhar mais atento aos carros, telemóveis ou eletrodomésticos à nossa volta quando as visitamos poderão quebrar a familiaridade com o contexto europeu.


Marcas chinesas como a Chery, a BYD e a Great Wall têm uma quota de mercado muito relevante (e crescente), oferecendo veículos que combinam tecnologia avançada com preços acessíveis, mesmo que as marcas coreanas e japonesas continuem a ter forte popularidade. Já as marcas europeias e americanas estão cada vez menos presentes – com os esperados impactos indiretos na indústria nacional e, em particular, na indústria de Leiria. Esta ofensiva reflete-se não apenas nos carros, mas também na proliferação de smartphones chineses na região, liderada por gigantes como a Xiaomi, a Huawei (proibida no ocidente, mas com imensa expressão no sul global) e a Oppo, que oferecem dispositivos de alta qualidade a preços competitivos.


Durante décadas, o Ocidente reinou no comércio global, impulsionado por multinacionais dos EUA, Europa e Japão. No entanto, essa hegemonia é hoje desafiada pelas empresas chinesas, que estão a expandir as suas operações para além das fronteiras nacionais e a penetrar nos mercados emergentes do Sul Global, a uma velocidade surpreendente – quer produzindo (a China expandiu as suas cadeias de valor, com o investimento direto a triplicar para 160 mil milhões de dólares em 2023, construindo fábricas de Marrocos à Malásia), quer vendendo (as vendas das empresas chinesas ultrapassaram, no Sul Global, os 800 mil milhões de dólares, superando as vendas dessas empresas nos países desenvolvidos).


Este avanço chinês não é acidental, mas sim o resultado de políticas bem orquestradas. À medida que os países ricos ergueram barreiras comerciais para proteger as suas indústrias, a China intensificou as suas relações com o Sul Global. Este movimento aproxima os países em desenvolvimento da China, enquanto o Ocidente se isola cada vez mais. O Ocidente, outrora o defensor mais fervoroso da globalização, agora recua, enquanto a China avança – a história diz-nos que raramente o protecionismo cego é uma boa política económica. Esta mudança traz oportunidades e desafios para todos os envolvidos, mas uma coisa é certa, o mundo não está a parar, e aqueles que melhor se adaptarem a esta nova realidade serão os que colherão os frutos no futuro.


As transformações geopolíticas e comerciais mencionadas anteriormente têm impactos profundos e diretos nas cadeias de valor globais, especialmente nas indústrias localizadas em países como Portugal. Com a ascensão das empresas chinesas no Sul Global, a competição nos mercados de automóveis, eletrónicos e outros bens de consumo está a intensificar-se, com implicações para a indústria de moldes e de desenvolvimento de produto em Portugal.


O avanço das empresas chinesas, que agora estão fortemente presentes em mercados emergentes, está a alterar as dinâmicas das cadeias de valor. Estas empresas não só dominam a produção e a venda de produtos finais, mas também estão a investir pesadamente em tecnologia de fabricação e desenvolvimento de novos produtos, áreas em que Portugal tradicionalmente desempenhou um papel crucial. Note-se que a questão passou de competir com fornecedores chineses na cadeia de valor dos players tradicionais para a substituição dos próprios players tradicionais (no fundo novos líderes das redes empresariais estão a emergir).


Os fabricantes portugueses de moldes enfrentam uma pressão crescente para se adaptarem a este novo cenário competitivo. Por um lado, existe uma oportunidade de colaboração com estas empresas emergentes, fornecendo moldes e soluções de alta precisão para suportar a expansão das marcas chinesas no mercado global. Por outro lado, a concorrência direta de fabricantes chineses, que muitas vezes operam com custos significativamente mais baixos, pode ameaçar as margens de lucro e a sustentabilidade das empresas portuguesas, especialmente se estas não conseguirem inovar e agregar valor aos seus produtos – sobretudo num contexto em que os próprios clientes tradicionais começam a definhar.


O sector automóvel é um dos maiores consumidores de moldes de alta precisão, e as mudanças na geopolítica comercial global estão a ter efeitos profundos neste mercado. Com as marcas chinesas a expandirem-se rapidamente em mercados como a América Latina, África e Sudeste Asiático, a procura por moldes específicos para novos modelos de automóveis muda (como já havia acontecido com a emergência dos novos players e fabricantes de carros elétricos). As empresas portuguesas de moldes, que tradicionalmente forneciam grandes fabricantes europeus e americanos, estão agora a ver uma redução nas encomendas destes clientes, à medida que as suas quotas de mercado diminuem no Sul Global. Em contrapartida, há uma oportunidade de se reposicionarem como fornecedores estratégicos para as marcas chinesas em expansão. Para tal, será necessário que as empresas portuguesas invistam em inovação, desenvolvam capacidades de produção mais flexíveis e se adaptem às especificidades dos novos mercados e produtos. Isso inclui, por exemplo, a capacidade de produzir moldes para veículos elétricos, que estão a ganhar popularidade rapidamente, e para componentes que utilizam novos materiais mais leves e sustentáveis.


O protecionismo crescente no Ocidente, combinado com a expansão das empresas chinesas no Sul Global, significa que as cadeias de abastecimento se tornam mais fragmentadas e regionalizadas. As empresas portuguesas terão de explorar novas parcerias e mercados fora da sua zona de conforto tradicional. Além disso, será crucial que estas empresas invistam em tecnologia de ponta como fabricação digital, automação avançada e inteligência artificial, para aumentar a sua competitividade.


Dados recentes mostram que o investimento em tecnologia na indústria de moldes em Portugal cresceu cerca de 5 % ao ano, mas isso pode não ser suficiente num ambiente de rápida evolução tecnológica global. A colaboração com instituições de I&D e a formação contínua dos trabalhadores serão também fatores-chave para manter a relevância e competitividade da indústria de moldes em Portugal. Ao mesmo tempo, políticas governamentais que incentivem a inovação e o investimento em novas tecnologias serão essenciais para apoiar esta transição.


A nova geopolítica comercial está a reconfigurar as cadeias de valor globais, e a indústria de moldes em Portugal deve posicionar-se estrategicamente para aproveitar as oportunidades e mitigar os desafios. Adaptação, inovação, dimensão e colaboração serão os pilares para a sobrevivência.