O sector automóvel encontra-se numa fase de reinvenção e revolução tecnológica, sendo a nova geração de veículos um dos primeiros resultados de um longo processo de transformação deste ramo. Estas mudanças exigem alterações significativas na oferta de componentes em termos de design, funcionalidade, resistência, leveza, durabilidade, qualidade e custo.
Estas transformações devem ter como base a aplicação de materiais leves, baseados em recursos naturais (bio-polímeros e fibras naturais), devidamente incorporados num design ecológico e processos de fabrico mais eficientes.
Alinhado com esta estratégia, surge o projeto MultiMAt, em parceria com a Copefi, no âmbito do qual o desenvolvimento de produto e respetivos processos de fabrico estiveram nas mãos da equipa do INEGI – Instituto de Ciência e Inovação em Engenharia Mecânica e Engenharia Industrial. O Instituto desenvolveu uma guia de vidro para a porta de um automóvel recorrendo a materiais de origem natural (polipropileno reforçado com fibras naturais) e com menor impacto ambiental.
Esta guia de vidro automóvel, concebida com recurso a termoplásticos reforçados com materiais de base bio e combinados com elastómero de baixo atrito, em uma abordagem multimaterial e processo one-shot, reduz em 47,5 % o tempo de produção da peça; em 18,5 % o seu peso e em 1,2 % o seu custo total. É, por isso, economicamente mais atrativa e tecnologicamente mais viável face ao que existe atualmente no mercado, além de cumprir os requisitos impostos pelos stakeholders (Figura 1).
A análise técnico-económica realizada no final do projeto demonstra a capacidade nacional para atingir produtos de valor acrescentado. Os resultados obtidos durante a execução do MultiMAt culminaram no registo de uma patente, de forma a proteger os avanços científicos e fatores inovadores incorporados no produto final (EP 4 205 941 A1).
Para o redesign da guia de vidro, foram propostos diferentes conceitos, considerando-se para o efeito os seus requisitos mecânicos e de interfaces (montagem) com os restantes elementos. Posteriormente, com base numa matriz de decisão, incluindo parâmetros como a dificuldade técnica, custo, grau de inovação, impacto ambiental, materiais, eficiência energética e facilidade de implementação, foi selecionado o conceito a desenvolver. Concluiu-se que a melhor solução passaria por fabricar a peça através de um processo de bi-injeção - com termoplástico reforçado com fibra natural e elastómero de baixo atrito - e in-mold assembly de insertos metálicos, permitindo, assim, a produção de componentes numa única operação (Figura 2).
O sucesso da implementação e a fiabilidade dos resultados obtidos a partir da simulação estrutural e funcional da peça redesenhada (Figura 3) só foram possíveis devido à extensa campanha de caracterização de materiais. Foi utilizado o software Abaqus para a realização das simulações estruturais e funcionais.
A solução encontrada implicou o desenvolvimento e utilização de materiais atualmente não disponíveis no mercado, em particular um elastómero termoplástico com propriedades de baixo atrito, obrigando a uma extensa caracterização de materiais. A título de exemplo, na Figura 4 é apresentado o ensaio de atrito segundo a norma ASTM D1894, realizado ao elastómero desenvolvido, bem como os principais resultados.
Aliada à validação estrutural do componente, em paralelo, realizou-se o estudo da viabilidade e otimização do processo de injeção. Recorreu-se, para tal, ao software Moldex3D (Figura 5).
Fruto deste projeto resultou o produto apresentado na Figura 6. Após a sua conclusão, foram ainda realizadas campanhas de ensaios físicos, de forma a correlacionar e validar os resultados obtidos nas fases preliminares de desenvolvimento, garantindo, assim, a conformidade do mesmo.
O SECTOR AUTOMÓVEL E OS MATERIAIS COMPÓSITOS
Os avanços conseguidos com este projeto revestem-se de particular relevância quando sabemos que, de acordo com a Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel (AFIA), 98 % dos carros fabricados na Europa têm componentes produzidos em Portugal. Espanha (27,7 %), Alemanha (22,2 %) e França (10,7 %) são os principais destinos das exportações nacionais, que em 2022 somaram 10,8 mil milhões de euros. Trata-se de um aumento de 12,6 % em relação a 2021. Este desempenho é possível porque o sector é constituído por empresas com um perfil altamente tecnológico, com padrões de grande exigência e rigor.
Uma preocupação crescente do sector automóvel prende-se com os desafios de sustentabilidade. Os componentes do futuro devem adotar princípios de economia circular, incluindo a recuperação em fim-de-vida, a reutilização, a reciclagem e o uso otimizado de materiais reciclados e/ou de origem natural, assim como um processo produtivo altamente eficiente. Neste contexto, é necessário um investimento reforçado na inovação e aplicação de materiais avançados e leves, com particular ênfase na redução do seu peso, mantendo um custo competitivo.
Estes objetivos podem ser alcançados, através da aplicação de princípios de eco-design e do uso de soluções híbridas ou multimaterial adequadas que garantam a performance e os requisitos do produto ao nível da fiabilidade, durabilidade, etc. Esta é, aliás, uma necessidade totalmente alinhada com as iniciativas e imposições do espaço económico europeu, inseridas no programa de desenvolvimento do Horizon 2030, que visa o aumento da competitividade dos sistemas de transporte através do uso inteligente de recursos que sejam amigos do ambiente.
Destes programas, surgiram já novos materiais compósitos de origens renováveis, utilizando fibras naturais, maioritariamente de origem vegetal, ecológicas e com baixos custos. Há, por exemplo, alternativas ao uso de fibras de vidro que combinam sempre que possível o uso de matrizes poliméricas biodegradáveis. Como consequência, a utilização destes novos materiais remete-nos para a necessidade do redesign dos componentes e/ ou subsistemas e sua validação (requisitos do produto); o redesign for disassembly de componentes cada vez mais multifunção/multimaterial e orientados a novos processos de fabrico; e redesign orientado para a redução de custos.
Por outro lado, a substituição ou otimização de processos configura-se como uma via de redução efetiva da energia embebida no componente. O rácio custo-benefício e tempo de produção são os fatores mais importantes para ganhar a confiança dos consumidores.
O projeto MultiMat abordou estas questões e abraçou uma série de objetivos extensos, nomeadamente o desenvolvimento de produtos automóveis com materiais mais sustentáveis e economicamente viáveis, através da exploração de conceitos multimaterial. Debruçou-se ainda sobre a criação de metodologias de projeto e produção que garantam a integridade estrutural do componente durante o tempo de serviço esperado, em linhas com os níveis de exigência do sector automóvel; explorou a redução dos tempos de ciclo do processo através de metodologias de integração multifuncional e multimaterial validadas com ferramentas numéricas avançadas; e conseguiu a redução do peso dos componentes em 18 %, utilizando materiais de fonte natural. Tudo isto aliado à capacitação do tecido industrial nacional para desenvolver conceitos inovadores em produtos do setor automóvel.
O projeto MultiMAt é liderado pela Copefi S.A. e cofinanciado pelo Portugal 2020, no âmbito do Programa Operacional Competitividade e Internacionalização.
Texto: João Silva (Engenheiro de desenvolvimento no INEGI - Instituto de Ciência e Inovação em Engenharia Mecânica e Engenharia Industrial)